Não foi uma surpresa que em sua aula, no último dia do evento madridfusión (de 15 a 18 passados em Madri), o chef catalão Santi Santamaría tenha feito profissão de fé numa cozinha comportada e tradicional, como a que ele serve impecavelmente em seu restaurante Can Fabes. Embora o evento tenha como foco, desde a primeira edição há cinco anos, revelar os bastidores da cozinha de vanguarda que a Espanha vem mostrando ao mundo, ao mesmo tempo é aberto a todas as correntes culinárias. Neste ano, ao lado de nomes inovadores como o revolucionário Ferran Adrià, o inglês Heston Blumenthal, o norte-americano Grant Achatz, estiveram expoentes da cozinha que atêm-se às técnicas convencionais (como Charlie Trotter, de Chicago, Pascal Barbot, de Paris, Tetsuya Wakuda, de Sydney). Santamaría nunca aceitara participar, possivelmente em razão da rivalidade ante o conterrâneo Adrià, que, no passado, foi menos famoso, mas tornou-se o mais importante chef do mundo. Santamaría desta vez foi e fez o esperado elogio de sua cozinha sentimental. O que foi surpreendente foi a violência com que atacou (sem dizer nomes) seus colegas e a ovação que recebeu de um público que estava ali, teoricamente, para acompanhar a vanguarda da culinária. O chef começou cheio de veneno, dizendo: "Não vim aqui para vender máquinas" -insinuando ser este o objetivo dos colegas que, na pesquisa que fazem, desenvolvem novos equipamentos. Santamaría levou ao palco seus três principais cozinheiros e um sommelier, que prepararam pratos como num filme mudo, sem que o chef explicasse o que eles faziam. Seu ego parecia querer se equiparar ao seu volumoso corpo, e assim correu a aula, sem receitas, apenas pregação conservadora -e muitos aplausos. Depois da vanguarda ter tão rapidamente ganhado prestígio no mundo, parece ser a hora da reação. "Cozinhar, cozinhar..."
Em seu discurso, Santamaría atacou a invenção e o progresso, evocando como grande exemplo de vida o guisadinho que seu falecido pai lhe ensinou; vilipendiou a pesquisa técnica e a ciência ("Não me interessa de que é composto o ovo, desde que ele fique bom à mesa"); afetou humildade ao se colocar tão vil quanto seus colegas ("Somos todos uns farsantes que trabalham por dinheiro para dar comida aos ricos e esnobes"). Repetiu à exaustão obviedades ("carregadas de demagogia e populismo", disse o jornal "ABC"), numa mistura de pregador evangélico e Paulo Coelho: "Cozinha é o que vem do fogão à mesa", "cozinha tem que ser feita com o coração", "o que temos que fazer é cozinhar, cozinhar, cozinhar"... mas quem discordaria disso? A cada investida virulenta, a platéia, que lotava os 600 lugares do Palácio Municipal de Congressos, entrava em êxtase, aplaudindo de pé o óbvio e adorando os amargos ataques desferidos contra o progresso neste tão sensível campo das artes, a culinária. É bem verdade que, na véspera, todos ouviram respeitosamente a palestra de Ferran Adrià. Este enfatizou sua grande obsessão no conhecimento dos produtos, no estudo minucioso e científico dos ingredientes, no aprendizado de como tirar o melhor de cada um (seja usando um banho-maria, seja utilizando hidrogênio líquido) para daí preparar pratos prazerosos e surpreendentes. Adrià mostrou tabelas de classificação de ingredientes; mostrou alguns aparelhos e produtos capazes de fazer cápsulas e crostas. Falou de seu estudo da liofilização, que ele exemplificou mostrando leite de coco, puro, sendo congelado com nitrogênio líquido no formato desejado (nesse caso, como um ovo) e, em seguida, sendo liofilizado, ficando pronto para comer. "No futuro, poderemos fazer biscoitos sem ovo, gordura ou farinha, apenas o próprio ingrediente", sonha ele Ao mesmo tempo, falando à Folha, revelava sua preocupação com o fato de ter virado um mito, seguido por tanta gente muitas vezes despreparada: "Tenho de ir com cuidado, ou toda esta imitação será prejudicial". Relatou o lançamento de um instituto de pesquisas, Alicia (ALImentación y CienCIA), para chefs espanhóis e de todo o mundo. A ligação do passado e do futuro também foi pano de fundo da palestra de Heston Blumenthal, ao qual a platéia igualmente acompanhou com interesse: uma performance com óculos 3-D, aromas aspergidos, sons em último volume, docinhos de alcaçuz, ilustrando sua tese de que o público vai a um restaurante em busca também de lazer e diversão, e, por isso, a comida deve incorporar elementos lúdicos. É o que ele faz no seu Fat Duck, em Bray (Inglaterra), onde a cozinha tem uma enorme qualidade e surpreende todos os sentidos. Blumenthal, como Adrià e mesmo Juan Mari Arzàk, o decano chef basco que vem aderindo às novas técnicas, também fazem a cozinha com sentimento e paixão, mas olhando para o futuro. Santamaría parece agarrar-se à cozinha do século 20, do guisado de seu pai, o que ele faz com maestria. Preocupante é quando a nova geração aplaude com entusiasmo inquisitorial a condenação da cozinha revolucionária e se põe a sonhar com a cozinha de um século que já se foi.O duelo dos super chefs(Folha de São Paulo - 25/01/2007)
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